Não sei se faço uma analogia, propositalmente, sarcástica ou se penso em um espírito contrário ao de Weber. O que o capitalismo produziu – e ainda produz – é coisa do diabo. Ele cria um império mundial.
E a primeira coisa que chama a atenção em Weber foi ele ter pensado, não apenas no capitalismo como fenômeno que tangenciou e, de certo modo, se alimentou da ética protestante, mas como um espírito que forjou uma ideia de império.
Jung Mo Sung escreveu: Não raro, esquecemos que os Impérios formam, não só estruturas políticas e econômicas, mas também realidades culturais, intelectuais e econômicas.
Fica claro em qualquer olhar retrospectivo que os impérios precisavam de um espírito para se montaram. Eles procuravam se viabilizar pelo poder hegemônico seja pelo recurso militar, econômico, ideológico – e até mesmo teológico – e isso só acontece se houver um espírito por detrás.
Esse espírito, que criou ambições imperiais, deixa claro que tanto economia, cultura, domínio territorial ou imposição religiosa se tornam vitais em qualquer ambição universalizante. Por espírito, entendo a força que os impérios precisam para conquistar – e manter dominados – mentes e corações.
Mo Sung afirma: Na medida em que os europeus e norte-americanos conseguiram se impor no mundo como aqueles que possuem o “ser”, ele se impuseram como modelos de desejo e conseguiram impor o seu padrão de consumo para quase todos os países do mundo. Assim, foi solucionado o problema da criação e expansão do mercado consumidor mundial.
Nesta luta, pouco importa o nome que se dá. Os extremos da dialética são perigosos, pois visam: a) solapar a individualidade em nome de índices de crescimento; b) transformar a violência ostensiva numa violência tolerável, para que as mortes seja tratadas como aceitáveis em nome de um bem maior.
Nesse demônio, que energiza os impérios e habita o desejo antiquíssimo de pasteurizar a consciência, existe ilusão, entorpecimento, alienação. Na ressaca do final do século XX sobreviveu esse processo. O mercado se impôs com uma única e inexterminável ilusão: ele suprirá o desejo humano de viver satisfeito, em segurança e em progresso contínuo.
Li, estarrecido, o vaticínio de Stefan Sweig de que esse processo fará surgir messias, sebastiões, salvadores da pátria. Todos miniaturas dos tiranos que já existiram.
O grande inquisidor de Dostoiewski provou com cruel dialética que a maior parte dos homens verdadeiramente teme a liberdade dos problemas em face da complexidade e responsabilidade da vida, a grande massa anseia uma mecanização do mundo por meio de um sistema definitivo, que sirva para todos e dispense todo trabalho de pensar. Este anelo messiânico de libertar de todos os problemas a vida constitui o verdadeiro fermento que prepara o terreno para todos os profetas sociais e religiosos: em todos os tempos, quando os ideais de uma geração perderam o ardor e as cores, basta apenas que se erga um homem sugestivo e declare peremptoriamente que ele e só ele achou ou descobriu a nova fórmula e imediatamente a confiança de milhares se volta para o pretenso redentor do povo e do mundo. Em todos os tempos uma ideologia nova (e esta é sua significação metafísica) cria a princípio um novo idealismo sobre a terra. É que todo aquele que dá uma nova ilusão de unidade e de pureza à humanidade, primeiramente faz surgirem nela as mais sagradas forças: o espírito de sacrifício de entusiasmo. Milhões de indivíduos, como que encantados, acham-se prontos a se deixar dominar, fecundar e até violentar e quanto mais deles exige um tal enunciador e prometedor, tanto mais eles se entregam ao mesmo. O que ainda na véspera era seu maior prazer, sua liberdade, por amor desse sistema homens abandonam para melhor se deixarem conduzir por ele. Realizam-se muitíssimas vezes as velhas palavras de Tácito, “ruere in servitium”, a saber, que num ardente devaneio de solidariedade, os povos se lançam na servidão e ainda exaltam o flagelo com que são açoitados. [1]
Bertolt Brecht também foi incisivo sobre o absurdo da rapinagem do capital, que rouba sem ser percebido: O que é o arrombamento de um banco comparado à fundação de um banco?”. O que é o assassinato de um homem comparado à contratação de um homem? Mo Sung elabora sobre a frase de Brecht: Essas perguntas são quase sempre entendidas de forma moral, como a comparação de vários tipos de crimes. Entretanto, o mais importante é que essas perguntas nos lembram o poder do que é considerado normal e que, por esse motivo, é aceito sem discussão…
O discurso dos Estados Unidos para legitimar a invasão e destruição do Iraque ilustra bem como age o demônio do império. Mo Sung tece sobre ele: De como os esforços humanos para imitar a onipotência divina, a onipotência não pode ser mantida indefinidamente. Essas imagens de onipotência desconstroem, destroem as pessoas e seus projetos, mas não conseguem reconstruir nada de maneira duradoura.
Em um país devastado de cima para baixo, com bombardeios que prometiam ser cirúrgicos, o império tentou impor uma nova ordem social, política e econômica sem perceber – ou de caso pensado – valendo-se dos métodos draconianos que dizia combater. Para fazer valer uma ideia de liberdade, que na verdade não existia e nem participaria do futuro, foi um exército opressor.
Os impérios dependem de forças que esmagam. Esse poder degenera em tirania. Assim, as religiões que abraçam o demônio que alimenta o império, quando almejam se criar teocracias, forçam o dogmatismo, que também desemboca em tirania. Elas são co-assassinas com os tiranos.
Os idealismos que vingaram no começo do século XXI parecem não confiar noutro poder senão o da força – bruta, ostensiva ou sutil. Dou a palavra, novamente, a Stefan Sweig: Toda ideia, seja qual for, desde a hora em que lança mão do terrorismo no intuito de uniformizar e regulamentar convicções… já não é mais ideal, mas sim brutalidade. Mesmo a mais pura das verdades, quando imposta com violência a outros, torna-se pecado contra o espírito.
Slavoj Zizek cunhou o termo “pós-humano” para as pessoas que sofrem a lenta agonia do zumbismo da informatização, da automanipulação biogenética e da imbecilização publicitária. Ele pergunta: E se a utopia – o sonho pervertido da passagem do hardware para o software de uma subjetividade que flutua livremente entre encarnações diferentes – e a distopia – o pesadelo de seres humanos que se transformam voluntariamente em seres programados – forem apenas os lados positivo e negativo da mesma fantasia ideológica? E se for apenas e exatamente essa perspectiva tecnológica que nos faz enfrentar inteiramente a dimensão mais radical de nossa finitude?
É preciso desbancar o demônio que vingou no mundo pós-Muro de Berlim. Não há esperança sem que o espírito que fortalece o capitalismo seja exorcizado.
Outro espírito habita a mensagem do Evangelho. Ele faz um benfazejo convite para que olhemos a vida na perspectiva do ressurreto. Badiou, sendo comunista, viu no texto, principalmente, o paulino, que não há formas e fórmulas capazes de arrolhar o espírito humano. E esse espírito precisa ser redivivo. Insisto com Zweig: Até ao momento atual nunca se conseguiu impor ditatorialmente à humanidade inteira uma só religião, uma só filosofia, uma só concepção político-social e jamais se logrará isso, pois o espírito saberá sempre defender-se contra toda servidão, sempre recusará pensar de acordo com formas prescritas, deixar-se aplanar, afrouxar, reduzir e igualar a outros.
Que adianta se ganhar o mundo inteiro, se a vida se perde? (Mateus 16.25-26). Resistência tem a ver com a inversão da subjetividade, onde os que eram considerados não sujeitos ou não pessoas (na linguagem da teologia da libertação) tornam-se os verdadeiros sujeitos da história. A subjetividade dominante do fetichismo da riqueza é exposta como fraude sempre que denunciamos o demônio especializado em abençoar 1% dos homens (e menos mulheres) a ponto deles se tornarem os donos de metade de toda a riqueza do planeta. Ao que parece, “ganhar o mundo todo” não é caminho de resgatar a verdadeira subjetividade de bilhões de pessoas. Quem incentiva a ganhar, ganhar, ganhar, é um demônio. Outro Espírito nos convida a priorizar a gentileza, a valorizar a diversidade, a preferir a justiça e a gostar da simplicidade.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betes da Brasil.