O ministro Celso Mello, do Supremo Tribunal Federal, mandou para o arquivo o Inquérito 3921 que investigava suposta prática de delito pela senadora e ministra Kátia Abreu no uso de brasão da República em guias de recolhimento de contribuição sindical, emitidas pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, da qual a Ministra é presidente licenciada.
A decisão foi publica no dia 26 de maio último, acatando parecer do Ministério Público Federal. A decisão é irrecorrível.
Na sua defesa, a senadora e ministra Kátia Abreu alegou, dentre outras questões, que “quando assumiu a presidência da CNA em outubro de 2008, a entidade já efetuava a cobrança da contribuição sindical rural desde 1997, utilizando modelo de guia cujas características são definidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Portaria/MTB/GM n. 3233, de 29/12/1983, que prevê, no modelo, a inserção do brasão e do nome ‘Ministério do Trabalho’.
Segundo o Ministro do STF, “do ponto de vista técnico-normativo, a existência da controvérsia, com ponderáveis argumentos em sentido contrário, não permite a imputação, com o necessário grau de segurança, da prática dolosa da conduta. Sucede que não se afigura presente, de modo suficientemente claro, o dolo acerca de um dos elementos normativos do tipo, a saber, o ‘uso indevido’. Sentencia Celso Mello:” Sendo esse o contexto, passo a examinar a proposta de arquivamento formulada pelo Ministério Público Federal. E, ao fazê-lo, tenho a por acolhível, pois o Supremo Tribunal Federal não pode recusar pedido de arquivamento, sempre que deduzido pelo próprio Procurador-Geral da República (RTJ 57/155 – RTJ 69/6 – RTJ 73/1 – RTJ 116/7, v.g.), que entendeu inocorrente, na espécie, a presença de elementos essenciais e autorizadores da formação da “opinio delicti”.
Confira integra da decisão logo abaixo:
INQUÉRITO 3.921 (456)
ORIGEM :PROC - 253987520144013400 - JUIZ FEDERAL DA 1º
REGIÃO PROCED. :DISTRITO FEDERAL
RELATOR :MIN. CELSO DE MELLO
AUTOR(A/S)(ES) :MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
INVEST.(A/S) :KÁTIA REGINA DE ABREU
ADV.(A/S) :CARLOS BASTIDE HORBACH <<<***
ADV.(A/S) :CAROLINA CARDOSO GUIMARÃES LISBOA
DECISÃO: O Ministério Público Federal, em promoção subscrita pelo eminente Senhor Procurador-Geral da República, Dr. RODRIGO JANOT
MONTEIRO DE BARROS, manifestou-se pelo arquivamento deste procedimento penal, instaurado contra a Senadora Kátia Regina de Abreu, em pronunciamento assim fundamentado (fls. 225/231):
“PENAL E PROCESSO PENAL. INQUÉRITO. SUPOSTO USO INDEVIDO DE SINAL PÚBLICO POR CONFEDERAÇÃO SINDICAL: ART.
296, § 1º, II, DO CÓDIGO PENAL. ARQUIVAMENTO.
1. Inquérito instaurado para apurar a suposta prática do delito tipificado no art. 296, § 1º, II, do Código Penal.
2. Controvérsia sobre a legalidade do uso do brasão que afasta o dolo acerca do elemento normativo do dolo.
3. Manifestação pelo arquivamento da investigação. O Procurador-Geral da República, em atenção ao despacho de fls.
222, vem expor e requerer o que segue.
I. Relatório.
Trata-se de inquérito autuado para investigar a suposta prática do delito tipificado no art. 296, § 1º, II, do Código Penal, atribuída, em tese, à Senadora Kátia Regina de Abreu, tendo em vista o uso do brasão da República em guias de recolhimento de contribuição sindical emitidas pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA.
Conforme esclareceu-se na manifestação de fls. 63/69, foram instaurados na Suprema Corte outros inquéritos com objeto semelhante ao do presente. Nesses inquéritos, assim como no presente, a competência do STF fixara-se inicialmente em razão de a Senadora Kátia Abreu ocupar o posto de presidente do CNA.
No entanto, à míngua de elementos sobre a efetiva participação da congressista nas condutas apuradas, o Ministério Público Federal manifestou-se pela remessa das investigações à Justiça Federal no Distrito Federal, com a expressa ressalva de que, caso surgissem novos elementos de prova relacionados a agente detentor de foro por prerrogativa de função perante o STF, os autos deveriam retornar.
Ocorre que, no dia 4 de novembro de 2014, matéria jornalística publicada no endereço eletrônico http://veja.abril.com.br/radar-online/ tag/katia-abreu noticiou que a Senadora Kátia Abreu, questionada pelo uso indevido do brasão da República nas guias de contribuição sindical emitidas pela Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil, haveria dado a seguinte resposta:
‘Vinte por cento de tudo o que arrecadamos vai para o Ministério do Trabalho. No momento em que o ministério abrir mão disso, abro mão do brasão.’ Com isso, o Ministério Público Federal requereu a notificação da Senadora Kátia Abreu para prestar esclarecimentos.
Acolhida a manifestação (fls. 71/78), a senadora Kátia Abreu pronunciou-se por meio da petição de fls. 98/113. Na petição, a investigada alegou, inicialmente, que a condução da CNA cabe a uma diretoria colegiada, e, nos termos do estatuto da entidade, compete ao Presidente ‘administrar a CNA, juntamente com os demais diretores’. Sinalizou que na entidade existe o cargo de Vice-Presidente de Finanças, cuja competência engloba questões relativas à administração financeira e patrimonial da Confederação, inclusive a arrecadação da contribuição sindical rural.
Relatou que, quando assumiu a presidência da CNA em outubro de 2008, a entidade já efetuava a cobrança da contribuição sindical rural desde 1997, utilizando modelo de guia cujas características são definidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Portaria/MTB/GM n. 3233, de 29/12/1983, que prevê, no modelo, a inserção do brasão e do nome ‘Ministério do Trabalho’.
Explicou que, a despeito disso, pelo menos desde 2007 a utilização das armas nacionais nas guias de recolhimento passou a ser questionada, em especial por decisões da Justiça do Trabalho, em que se determina a expedição de ofício aos órgãos competentes para investigar a utilização do símbolo em documento expedido pela CNA, entidade privada. Aduziu que, em razão desses questionamentos, a Assessoria Jurídica da CNA tem exarado inúmeros pareceres defendendo a regularidade da utilização do brasão, seja pelo teor da Portaria n. 3233/83, seja porque parte do que é arrecadado reverte em favor da União.
Alegou que o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho têm enviado à CNA promoções de arquivamento de procedimentos em que investigada a prática de utilização irregular das armas nacionais, concluindo pela licitude da conduta da Confederação, conforme ilustra o processo nº 2009.70.01.0071188-4-PR, com cópias anexas à manifestação. Argumentou que, em razão da expressa dicção da Portaria, dos pareceres da própria assessoria jurídica e das promoções ministeriais, a Diretoria sempre entendeu ser lícita a conduta questionada, o que a tem levado a sustentar esse posicionamento mesmo diante do questionamento do próprio Ministério do Trabalho. Nesse ponto, informou que a União ajuizou ação para que a CNA deixe de utilizar o símbolo em questão.
Ponderou que a premissa utilizada pelo Procurador-Geral da República para concluir pela possível ilicitude da conduta investigada não é válida, porque a Portaria Ministerial n. 488, de 23 de novembro de 2005, não revogou integralmente a Portaria 3233, de 29 de dezembro de 1983. Sustentou que a Portaria de 2005 passou a disciplinar apenas a contribuição sindical urbana, permanecendo a disciplina da contribuição social rural afeta à portaria de 1983.
Defendeu que, a par da incidência da Portaria n. 3233/1983, a utilização das armas nacionais na guia da CNA não acarretou prejuízo a outrem, pois os contribuintes têm a obrigação de recolher o tributo, constando ou não na guia o brasão. Asseverou, ademais, que pessoalmente nenhum proveito obteve com o uso do brasão, acrescentando que o cumprimento da obrigação tributária não pode ser avaliado como benefício particular do agente arrecadador. Por fim, salientou que não há o elemento subjetivo do tipo, qual seja, a vontade livremente dirigida à utilização indevida do selo com o intuito de prejudicar outrem, beneficiar-se ou beneficiar a terceiros.
II. Fundamentos.
O exame dos novos elementos trazidos aos autos permite concluir ser o caso de arquivamento do inquérito. Inicialmente, necessário esclarecer que, embora discipline o modelo da Guia de Recolhimento de Contribuição Sindical Urbana – GRCSU, a Portaria n. 488, de 23 de novembro de 2005, referenciada na Nota Informativa n. 278/CGRT/SRT/MTE/2013, traz em seu art. 7º, expressamente, ‘que a Guia de Recolhimento de Contribuição Sindical, aprovada pela Portaria n. 3.233, de 29 de dezembro de 1983, poderá ser utilizada até o dia 31 de dezembro de 2005’. Não obstante, não há nos autos informação sobre a edição de nenhum outro normativo para regular especificamente a emissão das guias referentes à contribuição rural, a partir do ano de 2006.
Assim, forçoso reconhecer, portanto, que a questão não está inteiramente livre de controvérsia. A Procuradoria-Geral da República já se manifestou nestes autos pela impossibilidade de utilização do brasão da República nas guias de recolhimento sindical. Segue convicta a esse respeito. No entanto, são ponderáveis as razões deduzidas pela Investigada, notadamente a já mencionada inexistência de menção às contribuições sindicais rurais na Portaria nº 488/05, a natureza tributária da contribuição e o fato de parte de sua receita ser carreada para a União.
Embora essas considerações não modifiquem o entendimento da Procuradoria-Geral da República acerca da impossibilidade de utilização do brasão, apontam inequivocamente para a inadequação do direito penal para enfrentar a questão. Do ponto de vista técnico-normativo, a existência da controvérsia, com ponderáveis argumentos em sentido contrário, não permite a imputação, com o necessário grau de segurança, da prática dolosa da conduta. Sucede que não se afigura presente, de modo suficientemente claro, o dolo acerca de um dos elementos normativos do tipo, a saber, o ‘uso indevido’. Nesse passo, como se sabe, o agente deve conhecer os elementos objetivos integrantes do tipo de injusto doloso. A respeito, Muñoz Conde averte o seguinte: ‘Como ya antes se ha dicho, el autor debe conocer los elementos objetivos integrantes del tipo de injusto. Cualquier desconocimiento o error sobre la existencia de algunos de estos elementos repercute em la tipicidad porque excluye el dolo. Por eso se le llama error de tipo. (…) El error de tipo, igual que el elemento intelectual del dolo, debe referirse, por tanto, a cualquiera de los elementos integrantes del tipo, sean de naturaleza descriptiva (cosa, explosivo) o normativa (ajena, documento). Respecto a estos últimos, basta com que el autor tenga una ‘valoración paralela em la esfera del profano’ para imputar el conocimiento del elemento normativo a título de dolo’.
Advirta-se, por fim, que a ação ordinária nº 0011609- -72.2015.4.01.3400, ajuizada pela União em face da CNA, é medida suficiente para o tratamento da matéria, não estando o interesse público desabrigado.
Eventual insistência da Investigada – ou de quem lhe faça as vezes – após solução final da lide, impedirá negativa de dolo. Registre-se, outrossim, que ainda tramita na Suprema Corte o Inquérito nº 3830, de objeto semelhante ao do presente, que será oportunamente arquivado, com base nas mesmas razões aqui expostas.
Assim, providenciar-se-á a extração de cópias das fls. 98 e seguintes destes autos, para posterior juntada aos autos daquele Inquérito.
III. Conclusão
Ante o exposto, o Ministério Público Federal manifesta-se pelo arquivamento dos autos.” (grifei) Sendo esse o contexto, passo a examinar a proposta de arquivamento formulada pelo Ministério Público Federal. E, ao fazê-lo, tenho a por acolhível, pois o Supremo Tribunal Federal não pode recusar pedido de arquivamento, sempre que deduzido pelo próprio Procurador-Geral da República (RTJ 57/155 – RTJ 69/6 – RTJ 73/1 – RTJ 116/7, v.g.), que entendeu inocorrente, na espécie, a presença de elementos essenciais e autorizadores da formação da “opinio delicti”:
“ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO, A PEDIDO DO PROCURADORGERAL DA REPÚBLICA, POR AUSÊNCIA DE ‘OPINIO DELICTI’ – IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO QUE O DEFERE – REQUISITOS QUE CONDICIONAM A REABERTURA DAS INVESTIGAÇÕES PENAIS.
– É irrecorrível a decisão que acolhe pedido de arquivamento de inquérito policial ou de peças consubstanciadoras de ‘notitia criminis’ (RT 422/316), quando deduzido pelo Procurador-Geral da República, motivado pelo fato de não dispor de elementos que lhe possibilitem o reconhecimento da existência de infração penal, pois essa promoção – precisamente por emanar do próprio Chefe do Ministério Público – traduz providência de atendimento irrecusável pelo Supremo Tribunal Federal (…). Doutrina. Precedentes.”
(RTJ 190/894, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
“O PEDIDO DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL, MOTIVADO PELA AUSÊNCIA DE ELEMENTOS QUE PERMITAM AO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA FORMAR A ‘OPINIO DELICTI’, NÃO PODE SER RECUSADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
– Se o Procurador-Geral da República requer o arquivamento de inquérito policial, de peças de informação ou de expediente consubstanciador de ‘notitia criminis’, motivado pela ausência de elementos que lhe permitam formar a ‘opinio delicti’, por não vislumbrar a existência de infração penal (ou de elementos que a caracterizem), essa promoção não pode deixar de ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, pois, em tal hipótese, o pedido emanado do Chefe do Ministério Público da União é de atendimento irrecusável. Doutrina. Precedentes.”
(RTJ 192/873, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, acolho a promoção formulada pelo eminente Procurador-Geral da República, determinando, em consequência, o arquivamento dos presentes autos (Lei nº 8.038/90, art. 3º, I).
Comunique-se a presente decisão ao eminente Chefe do Ministério
Público da União.
Publique-se.
Brasília, 21 de maio de 2015.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator